JOANA BÉRTHOLO

E depois o Mundo Acaba Mesmo.

O Mundo podia ser uma enorme mesa de cozinha, numa abastada casa de campo, de uma daquelas famílias multidão, rol de filhos e rol de netos, em que a distância entre primos é já tal, que permite o incesto nas manhãs de Domingo.
Por debaixo dessa Mesa enorme estaria uma criança acocorada. Com o queixo junto aos joelhos, e os pés ligeiramente orientados para dentro, em encontro de dedos e impressões. Apenas seus muito grandes olhos girantes azuis com um buraco negro no meio nas órbitas como que cósmicas, como que se a órbita da Terra pelo Universo. Ainda o Sol, acima; e a Via Láctea desenhada nas nervuras da madeira.
Mesmo que a Mesa não fosse enorme, parecer-lhe-ia a ela que sim, pequenina que era na escala do Mundo. E todo aquele chão, elajeado e escorregadio, fazendo de vida. A vida como chão, donde tudo se ergue para cima. Nada para baixo. Nada menos que vivos, mesmo que rastejantes. E cada um dos pés da Mesa como um tronco de uma árvore centenária e sábia que a criança acocorada poderia abraçar, mas não trepar. Existir, mas não voar.
E o seu azul-como-mar rotante nas órbitas do seus olhos, mapeando o Mundo à volta dela, assíncrono à rotação da colher de café do pequeno-almoço acima. Nas nuvens. Espuminha do leite. Canela. Relva. Vento na cara, bordinha-d´água numa praia de Agosto. Momentos de paz e idílio.

A criança acocorada conta uma história a outra criança, entretanto Vinda ao Mundo. Explica-lhe: Esta é a História do Gesto.
A outra ouve com toda a atenção.

Era uma vez um dia, numa manhã, ao anoitecer; era a uma vez de um momento, num momento qualquer, antes por dentro da linha do tempo, era assim numa vez o Primeiro Gesto.
Já estava.

Antes desse momento, ninguém se lembra o que havia, aqueles que um dia se acharão humanos. Gesticulando domesticados domesticando gestos.
Houve algures na cronologia da terra, do ser, do estar, do pensar, do sentir, do suspirar, um primeiro alguém que primeiro tocou outro alguém. Ao de leve com as pontinhas dos dedos. E na altura foi original, porque reproduzia um Gesto que nunca tinha sido tocado. Uma melodia que ainda não tinha sido solta, apesar do som a saber de cor. Uma cor que não tinha sido projetada, apesar dos desenhos na rocha e dos padrões no lombo dos animais selvagens.
Só haviam animais selvagens. Só haviam gestos selvagens. Tudo se domesticou.
Houve um dia antes do fogo. Mas talvez já houvesse o vento. E nuvens. Ou primeiro veio a chuva, e só depois as nuvens. Tudo isto muito antes da roda. E não sei quando a luz. E quando o vento gira a roda e incendeia tudo com a sua luz, chovem imagens desenhando memórias de gestos que ainda não foram tocados. Porque tocar é domesticar.
Só o circulo é selvagem, porque gira, porque volta aqui, porque Nunca Me Abandones, mesmo que presos lá dentro. Os olhos dela azuis giram na roda da sua órbita artística, como num mundo onde a arte ainda não tivesse sido descoberta. Ou inventada?

Tem de ter havido um momento, num dia específico, numa manhã uma noite, um instante isolável, em que alguém suspendeu o mundo e sugeriu a roda. Teve de haver alguém que ignorou tudo o resto que o mundo já oferecia, que negou as lajes esquadrilhando geometricamente a cozinha, que negou o chão, e resolveu caminhar pela luz das imagens projectadas na parede da História:
Como uma criança que sussurra um segredo no ouvido de outra, acocoradas debaixo de uma enorme Mesa, mesmo que não seja tão enorme assim, enquanto toda a biodiversidade se agita acima. Os dinossauros barram manteiga de amendoim em pão de sementes de girassol.

Teve que existir um dia em que primeiro alguém improvisou um gesto tão estranho, tão incomum, tao inevitável, como o Abraço. O primeiro abraço. O Abraço Original.
A mãe que acalma o choro junto ao peito; Pode ter sido do frio, pode ter sido da noite, pode ter sido do medo. Pode ter sido do escuro lá fora. Pode ter sido primeiro ela, pode ter sido primeiro ele. Nem se dariam conta do que faziam, apenas o faziam, e faziam-no bem. Nem houve nunca como o fazer mal.
Encontrando-se ambos os corpos a caminho de outras coisas familiares, mas imaginando que até ali o apego nunca tomava aquele percurso. Inauguraram os trilhos da entrega, mas nem perceberam que viajavam. Que o Universo é uma Mesa: mas esta gruta, também. Talvez o mundo ruísse, dada aquela viagem inaugural. Não ruído, quedaram-se eles - por terra, por pedra, por gelo ou pelas lajes geométricas da vida – onde quer que tenha sido o Primeiro Gesto.

Uma das crianças desenha uma trança no cabelo da outra, muito desajeitada. Desfeita assim que a mão larga o tufo. Apesar de entretidas, não lhes passa desapercebido o girar do mundo.
Caiem umas quantas migalhas no chão. O cão passa e lambe-as, lambe a sua própria pata. Lambe a Terra. As crianças abraçam o Tronco do universo e puxam a toalha do tempo. Há apenas esse Gesto e depois não há mais nada. Estilhaços.
Depois, o Mundo acaba mesmo.




Para a Mónica,
de Berlim, a 11 de Setembro de 2007